_texto escrito por Lucca Bopp, do boppismo news.
Ouvir Belchior é caminhar entre a melancolia e a esperança e o álbum Coração Selvagem talvez seja o exemplo mais bem acabado dessa dicotomia afetiva auditiva. A primeira faixa do álbum é a canção que dá nome a ele e nomeia tantas outras coisas. Belchior sempre aparece com uma chave nova para abrir fechaduras que a gente só se dá conta ouvindo seus versos. Coração Selvagem diz sobre as dobras do blusão, sobre a pressa de viver, sobre o tempo de se apaixonar, sobre o gole de cerveja no copo de quem a gente ama no bar que a gente gosta. A vida não é muito mais que isso, então se alguém falasse que Coração Selvagem é a música mais linda já escrita não seria nenhum absurdo.
Falando em músicas lindas, o segundo golpe do álbum atende pelo nome de Paralelas e me faz lembrar de quando eu conheci Belchior, no já remoto ano de 2017 - ano de sua morte. Conheci e me reconheci no seu trabalho depois que Belchior foi embora e Paralelas me convidou a uma reflexão que qualquer trabalhador privilegiado já se viu imerso:
“E no escritório em que eu trabalho e fico rico / Quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor”
O trabalho é inimigo do amor. Porque, como está escrito em Coração Selvagem, é preciso de tempo para se apaixonar e se tem uma coisa que o trabalho nos tira é tempo. E nesse caso tempo não é dinheiro, aliás, se me permite, tempo é tudo aquilo que não envolve dinheiro. Então quando eu ainda era um menino de 26 anos e via o Rio Pinheiros pela janela de um trabalho corporativo em uma agência de publicidade de luz branca, multipliquei o dinheiro e fracionei meu tempo.
E, nas horas que me restavam, queria a sessão de cinema das cinco para beijar a menina e levar a saudade na camisa toda suja de batom. A terceira faixa do álbum é um guia do homem solteiro, que pensa sobre pensar em alguém. Todo sujo de batom deveria ser a trilha sonora oficial do banho antes de um encontro amoroso, naquele momento em que vislumbramos como vai ser o rolê. Aliás, tudo começa no banho pré date. É ele que define como vai ser aquela madrugada, ainda que a gente tente acreditar que não. Belchior não é só um intérprete inconfundível e um letrista singular, Belchior é também o mais fluente Tradutor do Simples™.
Essa alcunha se manifesta à perfeição em “Caso comum de trânsito”, até porque ele abre a música declarando que “faz tempo que ninguém canta uma canção falando fácil”. Se fazia tempo em 77, em 2025 são eras geológicas. A pretensão na composição, com figuras de linguagem e métricas e rimas surpreendentes, esvaziam aquilo que uma música deve ter por definição: alma. Você pode não gostar de Belchior, mas dizer que suas canções não têm alma é como dizer que piscina com onda é igual a uma praia.
Seu trabalho tem alma porque Belchior tem medo e haja coragem pra dizer que tem medo. Nesse sentido, o Bob Dylan cearense é o camarada mais destemido da MPB. Em Pequeno Mapa do Tempo ele diz a palavra “medo” 38 vezes. Declara ao país (em todos os estados citados na letra) que tem medo. Assim, declara ao mundo que é macho. Do que tanto você tem medo, mestre? seria o que eu perguntaria a ele se o visse. Eu tenho medo que a gente pare de ter medo.
O arranjo meio rock meio meio blues de Galos, Noites e quintais é, na opinião desse leigo oficial, uma escolha discutível. A letra é delicada e linda e sua versão mais intimista faz mais sentido com as coisas que ele diz. “Eu era alegre como um rio (...) quando havia galos, noites e quintais” pede voz e violão, sem muita firula. Aliás, sem violão. A versão à capela seria ainda mais poderosa, queria que existisse. Como não existe, a própria versão que acontece no pout pourrie da penúltima faixa corrobora com a minha tese. Escutem a versão que vem depois de Belchior cantando um salmo em latim(!!!!) e nos lembrando porque trata-se de um intérprete brutal.
A esperança mencionada no primeiro parágrafo é muito mais pela forma que Belchior canta do que pelas letras de sua música, embora ele escreva vez ou outra sobre a beleza do acreditar. “Clamor no deserto”, como o título já sugere, traz o camarada assumindo que é difícil começar tudo de novo, mas ele quer tentar. Outro dia escrevi que toda tentativa, frustrada ou não, é um sinal vital. Sabemos que estamos vivos toda vez que tentamos. Belchior sabia disso. Ou sabe?
Aí Populus, próxima faixa, entra e leva o álbum mais pra baixo. É a pior música disparado, então não vamos falar tanto dela. Até porque Carisma, esse baião bonito demais, pede passagem dizendo que dar a vida pelos seus é mais importante que Deus; que Deus e o mundo. E aí me lembro da minha mãe e das minhas irmãs e da minha avó, que só sabem viver desse jeito. Professoras do amor que eu aprendi. Todas elas mais importantes que Deus e o mundo.
Em “Como se fosse pecado”, Belchior se despede dançando e batucando um canto concreto para balançar o coreto. E balança. Ouvir Belchior é balançar entre a melancolia e a esperança, num movimento pendular de fora pra dentro e dentro pra fora. Sabendo que o grande segredo da vida é ter pressa de viver, se demorando no amor e em tudo que é simples.
amo a bateria desse disco e, salvo engano, tem Hélio Delmiro na banda.
o meu preferido de Belc.
Adorei o texto.