[15/1000] Antonio Adolfo - Feito em Casa
Um Catálogo Convida: Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais
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, do .Para quem é apaixonado, falar de música é como falar da própria vida. Como jornalista e crítico, é tarefa importantíssima abandonar o tom autobiográfico. Mas há certos momentos em que a gente se deixa levar pelas memórias – é o que faço na minha própria newsletter, a Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Acho que também é difícil falar de Feito em Casa sem adotar tal estratagema.
Por isso, “senta que lá vem história…”
Quando eu era criança, lá pelos anos 1990, meu pai guardava os seus vinis num móvel grande de madeira. Era muito maior do que eu, praticamente da altura dele. As gavetas menores guardavam CDs e fitas. Já as três maiores (e pesadas a ponto de dar medo de esmagar meu pé) serviam para guardar os vinis – que rodavam todo sábado à noite na vitrola, o único horário em que tanto eu como Seu Capelas estávamos em casa ao mesmo tempo.
Foi nessa época que vivi minha primeira paixão pela música: pequenino de pé no chão, já sabia cantar Lamartine Babo ou Assis Valente de cor. De vez em quando, porém, meu pai deixava de lado a gloriosa coleção História da Música Brasileira – Grandes Compositores, da Abril Cultural, para tocar um disco avulso ou outro. E um dos que mais giravam era justamente Feito em Casa, que me encantava desde pequeno pela capa especial, toda feita com carimbos – o mesmo material que minha mãe usava para corrigir provas e as tias lá da escola adicionavam nos meus desenhos.
Anos depois, ali no começo da adolescência, Antonio Adolfo voltou a aparecer na minha mão. Na época eu andava encantado com a Brazuca, que descobri por conta do livro A Era dos Festivais, do Zuza Homem de Mello. E aí meu pai colocou Feito em Casa na minha frente de novo, já agregado de outra informação. “Esse é o primeiro disco independente do Brasil, Bruno”, disse ele, apontando para o selo da gravadora Artezanal, com Z mesmo. Na sequência, ele contava sempre a mesma história: que comprou o disco nos idos de 1978 ou 1979, com um dos primeiros salários dele como estagiário na GM – a prova é que a cópia dele sempre teve um encarte da revista SomTrês falando justamente de Adolfo, que o motivou a abrir o bolso.
Na verdade, Feito em Casa não é exatamente o primeiro disco independente feito por aqui, mas, entre o fato e a lenda, o pioneirismo de Antônio Adolfo vale que a lenda seja impressa mais uma vez. É um disco feito na raça, gravado por Adolfo e seus amigos no estúdio carioca Sonoviso, na época usado apenas para jingles. Não interessou às gravadoras: apesar de ter composto hits como “Juliana”, “Teletema”, “BR-3” ou “Sá Marina”, Adolfo tinha ficado marcado pela debacle de seu primeiro álbum solo, lançado em 1972, mal-sucedido (e lindo de morrer). Sem espaço, ele mesmo foi à luta, conquistando um lugar ao sol.
A verdade é que essa história não valeria de nada se o disco não fosse bom. E ele não é só bom, como é excelente: além de estar acompanhado de músicos do primeiro time da época, como Jamil Joanes, Luiz Cláudio Ramos, Luizão Maia e Danilo Caymmi, Antonio Adolfo ainda desvela um estilo de piano elétrico & sintetizador muito especial. É um álbum que passeia entre o jazz, a música brasileira, o pop sofisticado de gente como Burt Bacharach e até um pouco de easy listening. Mais que isso, do nome ao último sulco na agulha, Feito em Casa é um álbum despojado, como numa reunião de amigos em que se faz uma macarronada rápida só pelo prazer de continuar conversando (e tocando).
É esse o clima que se instaura em faixas gostosas de ouvir como o “Acalanto” cantado por Joyce Moreno, o “Dia de Paz” que tem versões com letra de Jorge Mautner, o charme de “Venice” ou a malemolência divertida da faixa-título, sem falar na homenagem a Chick Corea em “Chickote”. Até mesmo quando vai falar dos tempos sombrios de ditadura, na excelente “Aonde Você Vai” cantada pelo próprio Adolfo, o disco tem alto-astral.
À primeira vista, sei que um disco de música praticamente instrumental (só três das onze faixas originais são cantadas) pode parecer pouco atraente, até mesmo um bocado árido. Mas a verdade é que Feito em Casa, mais do que cervejas artesanais ou restaurantes de comida afetiva, tem mesmo aquele gostinho de casa de família, de aconchego: um disco feito pelo puro prazer de mostrar belas canções ao mundo – e com um clima perfeito para esses dias bestas de final de dezembro.
Feito em Casa talvez também seja o ponto máximo de um dos meus compositores brasileiros favoritos: se com a Brazuca Adolfo era pop, depois deste aqui ele se embrenharia fundo pelo groove, pelo jazz e por revisitações da bossa nova que lhe deu régua e compasso. (Vale até citar que, entre muitas outras referências, “Cascavel” fez parte do setlist do BADBADNOTGOOD em recente apresentação no Brasil).
Mas aqui… ah, aqui Adolfo é tudo isso ao mesmo tempo, sem perder o charme nem a autonomia. Sorte a nossa de que, faz quase cinquenta anos, ele teve a brilhante ideia de comprar capas de disco ao contrário e uns carimbos para espalhar sua música pelo mundo. Acho justo continuar a missão e seguir espalhando a palavra.
Baita honra receber esse convite, meu caro! <3